1. Ora, naqueles dias, crescendo o número dos discípulos, houve uma murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas daqueles estavam sendo esquecidas na distribuição diária.
2. E os doze, convocando a multidão dos discípulos, disseram: Não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas.
3. Escolhei, pois, irmãos, dentre vós, sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais encarreguemos deste serviço.
4. Mas nós perseveraremos na oração e no ministério da palavra.
5. O parecer agradou a todos, e elegeram a Estevão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas, e Nicolau, prosélito de Antioquia,
6. e os apresentaram perante os apóstolos; estes, tendo orado, lhes impuseram as mãos.
7. E divulgava-se a palavra de Deus, de sorte que se multiplicava muito o número dos discípulos em Jerusalém e muitos sacerdotes obedeciam à fé.
8. Ora, Estêvão, cheio de graça e poder, fazia prodígios e grandes sinais entre o povo.
9. Levantaram-se, porém, alguns que eram da sinagoga chamada dos libertos, dos cireneus, dos alexandrinos, dos da Cilícia e da Ásia, e disputavam com Estêvão;
10. e não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito com que falava.
11. Então subornaram uns homens para que dissessem: Temo-lo ouvido proferir palavras blasfemas contra Moisés e contra Deus.
12. Assim excitaram o povo, os anciãos, e os escribas; e investindo contra ele, o arrebataram e o levaram ao sinédrio;
13. e apresentaram falsas testemunhas que diziam: Este homem não cessa de proferir palavras contra este santo lugar e contra a lei;
14. porque nós o temos ouvido dizer que esse Jesus, o nazareno, há de destruir este lugar e mudar os costumes que Moisés nos transmitiu.
15. Então todos os que estavam assentados no sinédrio, fitando os olhos nele, viram o seu rosto como de um anjo.
Os apóstolos resolvem dividir as funções na igreja primitiva
O ano é aproximadamente 34 d.C. Jerusalém, o coração do mundo judeu, pulsa com a energia de uma comunidade que se expande de maneira vertiginosa. Em meio às ruas de pedra e aos mercados fervilhantes, uma nova fé, nascida da morte e ressurreição de um carpinteiro da Galileia, começa a tomar forma e a se organizar. Esta não é apenas uma história de crescimento, mas de tensões internas, de perseguição e de uma revolução silenciosa que mudou o curso do cristianismo para sempre.
A comunidade cristã primitiva
A comunidade cristã primitiva, conhecida como “o Caminho”, era composta por um grupo surpreendentemente heterogêneo. Em sua maioria, eram hebreus, judeus nativos da Judeia, que falavam aramaico e seguiam as tradições religiosas e culturais de forma rigorosa. Eles se viam como a continuação natural do judaísmo, a realização das profecias. Mas havia um outro grupo, cada vez mais presente, que gerava uma sutil, mas profunda, fricção: os helenistas.
Quem eram eles? Os helenistas eram judeus da diáspora, ou seja, de diversas partes do Império Romano, como a Grécia, a Síria, o Egito e até mesmo Roma. Eles falavam grego, a língua franca da época, e estavam mais abertos à cultura e filosofia gregas. Embora ainda fossem fiéis ao judaísmo, suas práticas eram um pouco diferentes. Eles frequentavam sinagogas próprias, liam a Bíblia hebraica em sua tradução grega, a Septuaginta, e, de certa forma, viam a fé de forma mais universal, menos ligada exclusivamente a Jerusalém e ao Templo.
A comunidade de Jerusalém, no entanto, era predominantemente hebraica. A liderança, composta pelos apóstolos, era toda de hebreus. E essa diferença cultural e linguística começou a gerar um problema inesperado. O texto de Atos 6, de maneira direta, nos conta que “surgiu uma murmuração dos helenistas contra os hebreus”. O motivo? As viúvas helenistas estavam sendo negligenciadas na distribuição diária de alimentos e recursos.
Pensem na cena: uma comunidade em rápido crescimento, um sistema de partilha de bens que dependia da boa vontade e da organização humana, e uma falha de comunicação e prioridade. As viúvas, na sociedade antiga, eram uma classe social extremamente vulnerável. Sem o apoio de um marido ou de uma família, elas dependiam da caridade da comunidade para sobreviver. E essa negligência não era apenas um problema logístico; era uma questão de justiça, um abismo que se abria entre os dois principais grupos da igreja.
As viúvas eram o cerne de uma crise. Na lei de Moisés, havia instruções claras sobre o cuidado com os pobres, os órfãos e as viúvas. No judaísmo, a caridade era uma obrigação religiosa, a tsedacá, um ato de justiça e não apenas de bondade. A negligência das viúvas era uma falha grave, uma que trazia preocupação à sociedade como um todo, não apenas por questões de caridade, mas por questões de ordem social. Uma sociedade que falha em cuidar dos mais vulneráveis é vista como falha em sua própria estrutura moral e religiosa. A igreja primitiva, se quisesse se manter coesa e fiel aos ensinamentos de Jesus, precisava resolver esse problema imediatamente.
O Nascimento de uma Nova Liderança
Os apóstolos, diante da crescente tensão, reconhecem a gravidade da situação. Eles se reúnem e fazem uma declaração que revela a sabedoria e a humildade dos líderes. Eles dizem: “Não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus para servir às mesas”. Essa frase não é um desprezo ao serviço, mas uma definição de prioridades. O trabalho dos apóstolos era a oração e a pregação da Palavra. Para manter a igreja crescendo de forma saudável, as tarefas precisavam ser divididas. Eles não podiam se sobrecarregar com a logística diária a ponto de negligenciar sua missão principal.
A solução é revolucionária. A comunidade é instruída a escolher sete homens de “boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria”. Essa é a primeira vez que a igreja, como um corpo, escolhe seus líderes para uma função específica. A escolha é feita pela comunidade, e a lista dos eleitos é notável.
Todos os sete nomes são gregos. Essa não foi uma coincidência. A eleição dos helenistas para servir os helenistas foi um ato de reconciliação e de reconhecimento. A liderança dos apóstolos, toda hebraica, estava dando poder e voz a um grupo que se sentia marginalizado. Foi uma demonstração de unidade, uma cura para a divisão que se formava. E o primeiro nome da lista, aquele que se destacaria de todos os outros, era Estêvão.
Estêvão é descrito como “cheio de fé e do Espírito Santo”. Ele se torna muito mais do que um distribuidor de alimentos. Ele se torna um poderoso pregador, um líder carismático, que começa a realizar “grandes prodígios e sinais entre o povo”. Seu ministério, por sua vez, provoca uma reação intensa. Ele não apenas prega em sinagogas helenistas, mas também debate com sabedoria e poder que ninguém podia resistir.
Estevão é acusado injustamente e preso
A pregação de Estêvão, cheia de audácia, toca em pontos sensíveis da ortodoxia judaica da época. Ele fala de Jesus como o Messias, o que era inaceitável para muitos líderes religiosos. Diante da incapacidade de resistir à sua sabedoria, seus oponentes, membros da Sinagoga dos Libertos, se voltam para a tática mais antiga de todos os tempos para silenciar uma voz que não podem refutar: o suborno e a calúnia.
O texto de Atos 6 é explícito: “Subornaram homens que dissessem: Temos ouvido este homem dizer palavras blasfemas contra Moisés e contra Deus.” O suborno, aqui, é usado no sentido literal e figurado. Literalmente, homens foram pagos para dar falso testemunho. Mas, figurativamente, o suborno é o ato de corromper a justiça, de manipular a verdade para servir a um propósito pessoal ou ideológico. A acusação é grave: que Estêvão falava contra o Templo e contra a Lei, os dois pilares mais sagrados do judaísmo.
A multidão e o Sinédrio, o supremo tribunal judeu, são agitados. Estêvão é levado para julgamento. As acusações falsas são apresentadas, e os líderes olham para ele, esperando uma reação de medo, de desespero. Mas o que eles veem é algo que os silencia. O texto sagrado diz: “E todos os que estavam assentados no Sinédrio, fitando os olhos nele, viram o seu rosto como de um anjo“.
O que isso significa? Não é apenas uma beleza sobrenatural. A expressão é uma referência direta a Moisés no Antigo Testamento. Quando Moisés descia do Monte Sinai após falar com Deus, a sua face brilhava tanto que ele precisava cobri-la. Ver o rosto de Estêvão como o de um anjo era o reconhecimento de que ele estava em profunda comunhão com Deus, que a glória de Deus estava sobre ele. É um sinal de santidade e de autoridade divina.
Mais do que isso, é um contraste impressionante. Os acusadores, movidos por mentiras, ódio e suborno, olham para o réu e veem o rosto de Deus. A verdade e a pureza de Estêvão eram tão evidentes que se manifestavam fisicamente. Aqueles que o julgavam viam a si mesmos refletidos em sua própria corrupção, enquanto a face de Estêvão brilhava com a luz da inocência e da presença de Deus.
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Dia 10
